Por Débora Andrades
Ainda ruminando a perda do amigo, dois fatos subsequentes potencializaram a indignação do repórter. O primeiro, ao tomar conhecimento do sufoco por que passou um colega americano, vindo de Nova York, que no Rio decidiu participar de um favela tour na Rocinha, zona sul da cidade. A certa altura do trajeto, achou que poderia fotografar uma cena local utilizando-se de um flash. Ao espocar da luz, um jovem armado de fuzil apareceu do nada e ameaçou o jornalista, aos berros: "Pára com isso, aqui é área do tráfico, é área do tráfico!" O americano perdeu o filme e a câmera antes de ser liberado, trêmulo, para voltar ao hotel e contar sua história. Percival relembra: "Fiquei furioso. Quer dizer que agora só podemos ir aonde o traficante deixar?"
O segundo fato deu-se quando jornalistas do Rio pretenderam realizar um ato em homenagem a Tim Lopes no alto do Morro do Alemão, no local onde o repórter da Rede Globo foi seviciado e morto. Proibida pelo tráfico, a manifestação foi transferida para a Igreja da Penha. "Eu era amigo dele e toda essa história me transtornou muito", diz Percival. Foi quando decidiu partir para o trabalho. "Um livro como esse não seria feito em menos de dois anos. Mas a vontade de fazer foi maior do que as limitações. Escrevi com a alma e com o coração." Apurou as informações até o final de agosto e em 1º de setembro começou a escrever. Trancou-se em casa por 45 dias e de lá saiu com o texto pronto para a editora.
Narcoditadura reconstitui a história do assassinato de Tim Lopes com um pano de fundo tecido por fios condutores que levam ao tráfico e ao crime organizado; no permeio da narrativa, uma discussão sobre o jornalismo investigativo e seus riscos. "O trabalho do repórter investigativo é muito solitário, só ele é capaz de avaliar os riscos que corre e não tem como dividi-los com ninguém", diz Percival, ainda incomodado sobre o que leu a propósito da "proteção" que teria faltado a Tim Lopes.
Baseado em São Paulo, na fase de apuração Percival foi várias vezes ao Rio. "Além de conhecer o local onde se deu o crime, eu precisava entender muitas coisas. Como, por exemplo, o fato de Elias Maluco [mentor e executor do assassinato de Tim] ter ficado preso por quatro anos e, por meio de um habeas corpus, ganhado a liberdade. Isso mostra o poder dos traficantes, o alcance do crime organizado, as mazelas de um Judiciário irresponsável e o papel desempenhado por advogados tão bandidos quanto os bandidos." (Elias Maluco foi solto porque, na fase de instrução de um processo de seqüestro do qual era réu, os procedimentos foram procrastinados ostensivamente a ponto de a sentença não ser proferida. Depois de quatro anos sem condenação, não foi difícil aos seus advogados conseguir o habeas corpus).
Os jornalistas, segundo Percival, também protagonizaram cenas no mínimo heterodoxas nos atos seguintes ao crime. Como o fato, relatado no livro, de, no calor da comoção, o jornal O Globo ter colocado um colete à prova de balas à disposição de seus jornalistas que se sentissem ameaçados na cobertura da cidade. "Os jornalistas ficavam olhando aquele colete na redação... uma cena constrangedora", diz.
Para ir ao local por onde transitava e foi capturado Tim Lopes, Percival subiu clandestinamente o Morro do Alemão a bordo de uma caminhonete de entrega de produtos diversos para os botecos locais. O veículo tinha uma caçamba com janelas de vidro fumê. Como era um carro conhecido na área, não tinha problemas em circular. "Só contei isso para minha mulher no mês passado", confessa. Primeiro, o repórter apenas observou. Depois de diversas caronas, chegou o dia em que Percival finalmente desceu no ponto final do trajeto, perto do local onde fica a gruta denominada microondas pelos traficantes. Ali eram queimados os corpos das vítimas das gangues.
"Foi um choque. Minha primeira reação foi um choro convulsivo. Você vai caminhando pelo lugar e percebendo as coisas lentamente. O que me chamou a atenção foram os muitos aros metálicos espalhados pelo chão. O que era aquilo? Eram cintas de aço, a parte do pneu que não se queima. Cada cinta daquelas era uma morte", lembra, referindo-se à prática dos bandidos de incinerar os corpos das vítimas embalados em pneus velhos.
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